quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Por um amor menos profundo que os sonhos buscam no pecado...


Vernaculum obsessis II (70107)

"Não vou te mandar notícias não...Elas envelheceram comigo dentro da impiedosa extensão do meu tempo.Simplesmente isso..." – Sônia Pallone




Em algum tempo perdido de 2002...

Descobri o lençol e com uma preguiça desmedida caminhei trôpego até a janela. Abri a cortina e senti as primeiras manhãs do sol no rosto. Meus olhos se irritaram e então compreendi que não estava só.

***

Senti a boca ressecada e me lembrei dos seus cabelos balançando em meu rosto, seguindo os movimentos do vento na beira do píer, defronte a um rio caudaloso e límpido.

Ela encostou sua cabeça no meu ombro, suspirou levemente o ar frio do final da tarde, e senti cada pulsação sua como tivesse o dom de um ouvido hipersensível. Cada passo de sua dor que parecia finalmente não se conter mais. Ela fingiu um sorriso pra mim e retribui com um carinho no seu rosto, tirando os fios de cabelos da sua testa.

- Você já sentiu isso? – Perguntou.

- Senti o que?

- Essa sensação de que você tem todos os seus melhores amigos a sua volta, família e ainda assim se sentir só. – Lamentou.

- Sim, sempre... Mas...

- Isso não é ruim? Parece trazer uma melancolia que me leva a questionar se realmente ter amigos em minha volta, enquanto pareço idiota, eu os mereço.

- Olha, mas a vida assim mesmo, são momentos, fases que passamos e que temos que vincular sentimentos contraditórios com aquilo que está ao nosso alcance. Eu penso que é porque você tem uma carência afetiva muito grande.

- Como assim contraditório? Não entendi.

- Esse paradoxo que você me passou, de estar cercada de gente que gosta de você e te faz sentir bem e, ainda assim, achar que falta algo mais que não a deixe tão só.

- Ah, nossa eu sou complicada...

- É não, é só humana demais... Eu acho que te falta um romance.

Ela sorriu pra mim e balançou a cabeça, voltando-a ao meu ombro.

- Não chego a tanto, mas um pouco de emoção mundana já resolveria o meu problema. – Disse, sem pudor nenhum, com as palavras firmes das quais só amigos de longa data se permitem segredar.

Eu olhei para ela e depois para o pôr-do-sol que criava à nossa frente, dei uma risada espontânea e ela continuou olhando o rio, compenetrada.

- Acredite em mim quando eu digo que você merece mais do que isso, vá por mim.

- Eu sei... Falei por falar, só isso.

Mais tarde estávamos no bar tomando algumas tequilas e ela se engraçou com um playboy, bem artificial. Ele pareceu se sentir atraído por ela. Correspondeu o seu sorriso e deu uma piscadela. Típico do idiota que a gente encontra aos montes nesses bares da moda. Eu olhava pra ela com certa incredulidade, mas ainda assim ela me olhava com um ar transtornado.

- Por que não? – Me questionou se referindo ao "almofadinha".

- Realmente, por que não. É bonitão, veste bem, cabelo da moda, ar blasé, deve cheirar pra caralho e tem um carro zerado estacionado em algum canto aí fora.

- Você é um idiota sabia, reduz meus flertes a observações capiciosas.

- Opa, desculpe, não tá mais aqui quem falou.

Tomei uma última dose e a vi saindo do meu ninho protetor indo direto para as garras do gavião. Eram só sorrisos, os dois. De longe ela me acenou com um polegar positivo. Algo do tipo para me avisar que ele era um cara legal.

"Bom pra ela, melhor pra ele." – Pensei.

Paguei a conta e tentei acenar um adeus pra ela. Mas me ignorou por completo, estava fumando o mesmo cigarro que ele. Fui embora.

Cheguei em casa e todos já estavam dormindo, passei no quarto dos meus filhos e os dois estavam enrolados nos lençóis, cada um em sua cama e o meu mais novo abraçado com um cachorro de pelúcia que tinha quase o seu tamanho. Vislumbrei-os por alguns minutos e me retirei para o meu quarto.

Quando estava tirando a camisa o meu celular tocou, era ela. Do outro lado da linha um soluço curto e depois uma voz embargada me pedia socorro.

Peguei o carro novamente e voltei ao bar. Ela estava na frente me esperando, com os braços cruzados, caracterizando um desamparo comovente. Desci do carro e a abracei.

- O que houve? Quase não entendi o que você falou no telefone.

Ela nada disse, só pediu para levá-la embora daquele local. Eu tinha certeza que o playboy tinha aprontado alguma com ela, mas não me deixei levar pela piedade, se ela procurava algo com ele e se deu mal, não foi a primeira vez e nem foi por falta de aviso.

No carro, já seguindo até sua casa, ela me pediu que levasse pra minha, pois não queria dormir sozinha. Achei estranho, mas não a questionei. Ela então disse:

- Ele não fez nada, eu é que não entendo minha cabeça e me vejo sempre fazendo alguma merda. Percebi que posso ser um pouco melhor comigo mesma e acho que fui grossa com você.

Passei minha mão pelo seu rosto com um carinho de pluma, medindo o gesto para não parecer tão expansivo e sorri.

Levei-a até minha casa, entramos sorrateiramente no meu quarto e liguei o ar-condicionado. Ela então sentou na minha cama e meio sem graça disse que estava com sono, mas se ela quisesse conversar, bom "tudo bem".

- Eu também quero dormir. Faz o seguinte, aja como se eu não tivesse aqui e faz tudo naturalmente.

- Ah tá, fácil dizer isso pra você que é mulher, mas eu sou homem, a coisa é um pouco mais complicada.

Ela riu baixinho e me olhou com um ar de gaiata.

- Tá com medo de mim? De que eu te seduza?

Olhamos um para a cara do outro e começamos a rir, tentando conter o barulho. "Que adorável amiga maluca é essa que eu arranjei?".

- Tem um pijama meu aí em cima da cômoda, veste ele que tá limpinho e vamos dormir. Você não existe, sabia? – Retruquei.

Ela foi até o banheiro e se trocou, quando voltou eu já estava arrumando alguns travesseiros no chão e um cobertor.

- Eu vou dormir aí no chão contigo? – Ironizou.

- Muito engraçada, muito mesmo. Não, eu é que vou dormir aqui embaixo.

- Esquece isso, vamos dormir na mesma cama, eu preciso de um amigo, de um ombro largo e muito amigo.

Nada respondi, ri da sua inflexão ao fazer a proposta e deitei, logo ela deitou do meu lado e virou-se pra mim.

- E aí, nós já nos conhecemos? – Brincou.

- Não, mas podemos dar um jeito nisso.

- Como?

Eu beijei sua testa e disse: "Boa noite!"

Ela beijou o meu rosto e retribuiu o "boa noite", em seguida apaguei a luz do quarto e me virei. Ela dormiu logo e aproveitei o momento para ligar para sua casa. Falei com o seu irmão, expliquei que ela estava comigo e como já éramos amigos ficou tudo resolvido.

Era uma situação estranha, mas eu sabia dos problemas emocionais que ela passava e não poderia abandoná-la, ainda mais depois de ter saído da clínica de desintoxicação com menos de dois dias. Antes de dormir ainda fiquei lhe olhando com admiração, era muito bonita, mas ainda assim precisava defenestrar alguns fantasmas internos para viver melhor. Eu a amava muito.

***

Após o despertar, ela já estava pronta, me olhando da porta do banheiro com um sorriso matreiro no rosto.

- Dormiu bem? – Perguntei.

- Foi o melhor sono que tive em muito tempo. Obrigada, de coração.

Fui até o seu encontro e abracei com carinho. Beijei a sua testa e depois a levei até a porta, disse que havia chamado um táxi pelo celular.

Antes de sair combinei de passar na sua casa mais tarde e ela disse então que me aguardaria, passaria o dia visitando os amigos que não via há mais de seis meses.

- Ei Marcos – me falou antes de entrar no carro – eu estou limpa de verdade viu, como eu prometi à você.

- Eu sei, eu sei...

E acenei, lhe dando um tchau.

***

Um ano depois minha amiga morreria num acidente automobilístico, com outros dois amigos de faculdade, em Cuiabá (MT), sua cidade natal. Ela voltava de uma festa e estava no banco de trás do carro.
+ Para Carla Liza Moretti (1977 – 2003)

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