domingo, 4 de outubro de 2009

“Retalhos”, de Craig Thompson – Meu livro de cabeceira de 2009 (Saiba por que)...




No primeiro momento quando estava fuçando na Bookstore Exclusiva, do Porto Velho Shopping, esperava encontrar alguma novidade relacionada aos últimos encadernados da editora Panini (leia-se quadrinhos Marvel e DC). Aí na sessão específica de quadrinhos e livros juvenis estou mexendo vagarosamente em alguns encadernados caros (“Sandman”, da Conrad, que o diga – mas tava só olhando mesmo) quando minha vista bate na prateleira acima da minha cabeça no livro grosso, cuja lombada está intitulada “Retalhos”, Graig Thompson (quem é esse?). Puxei e a capa já me mostrou bem atraente, o desenho de um casal se olhando – aparentando adolescentes. Seria um romance (em prosa?), aí mexi, folheei e... EUREKA... Era uma história em quadrinhos. Caramba, com mais de 500 páginas.

Os desenhos eram ótimos, quase cartunesco, mas os traços eram familiares, com detalhes e refinamento que lembravam o mestre Will Eisner e na primeira passagem de olhos, lembrava – vá lá, em flashes – o magnífico “Estranhos no Paraíso”, de Terry Moore. Mas era uma impressão boa, daquelas de novidade, quando gera a necessidade de que você precisa conhecer. Não fiz de rogado, 592 páginas, um tijolo literário que valia 49 reais. Ai, ai... Bom, tinha que fazer valer a pena o investimento.

Em casa, no quarto, tive contato com o livro lendo a contracapa, elogios de dois gênios, o escritor e roteirista Neil Gaiman (“Sandman”) e do cartunista Jules Feiffer. Opa, já me animei. Na orelha um resumo dramático e nenhum pouco sutil. “(...) Retalhos trata da tragédia e das dores, físicas e morais.”

Bacana, deve ter um lado deprê onde mostra o amadurecimento do personagem central com sofrimento e questionamentos conscientes. Deve ser também uma narrativa com ritos de passagem, da infância a adolescência, mostrando que a vida é dura. Bom, já tava fazendo juízo da história antes de lê-la, me propondo a investigar mais o conteúdo literário que o seu autor queria mostrar. Situações autobiográficas geram bons momentos na literatura (Ernest Hemingway fez isso muito bem em seus melhores romances).

Em preto e branco, a história – que é dividida em nove partes distintas (“O quartinho”, “O barulho da caldeira”, “Página em branco”, “Estática”, “Eu não quero crescer”, “Espírito jovem”, “Assim como no céu”, “A caverna que sumiu” e “Rodapé”), coloca um fato comum que lembra um pouco a minha infância também, o personagem principal, que é o próprio autor, Craig, conta que dividia a cama com o seu irmão Phil. Eu não dividia a cama com o meu irmão, mas na infância e boa parte da adolescência dividimos o mesmo quarto. Eu moreno, como Craig, e o meu irmão aloirado, como Phil. Coincidência espartana.

Vindos de família cristã, minha mãe é evangélica e conduziu todos os membros da minha família a celebrar isso como uma das diretrizes na educação da gente. Craig e o seu irmão Phil são membros de uma família cristã, que seguem preceitos da Igreja Batista. E fica claro que a temeridade e o respeito perante Deus permeiam a vida dessa família e, principalmente, de Craig, que tornará ponto importante na construção do conceito que ele predisporá nas decisões mais importante da sua vida quando estiver amadurecendo.

Então acompanho a vida, de fato, nada fácil de Craig na escola, sofrendo horrores nas mãos dos meninos mais velhos e metidos, apanhando, sofrendo coação e sem maiores interesses, inclusive na vida escolar. Que estímulo ele teria em ir para um lugar onde apanha e o professor categoricamente o acha um “zero à esquerda”? Difícil. A forma como essa situação se apresenta é delineada com esmero pelo autor. Imagino que deve ter sido dolorido lembrar das partes tristes da vida.

O grande interesse na escrita de Graig é ele permitir se desvencilhar de tabus ou aplacar a verdade de suas lembranças com enrolação, pelo contrário, ele vai direto ao ponto dos seus medos vividos na época retratada, expondo situações críticas e dramáticas que podem soar comum (ou não), como o abuso sexual que é retratado de forma delicada e precisa – notável como ele deixa pistas conclusivas, para depois em um devaneio quase erótico expor com um texto limpo e recheado de conclusões observadas com experiência de quem vivenciou.

Mas não é só isso, o fato dele entrar em constante conflito com a educação religiosa rígida a que foi submetido pela família, a sua vida entra numa imersão de dúvidas entre o que é certo e errado, na medida em que cresce e tenta galgar experiências necessárias para o seu amadurecimento. O autor dispôs a desnudar de maneira contundente a sua visão.

O legal é que a história de Craig é situada numa comunidade rural provinciana onde a expectativa de vida para um jovem é quase nula, pois é aquela vidinha que anda em círculo, onde pouco ou quase nada há o que se fazer além de viver com muita imaginação e participar de programações habituais da igreja onde vive. A cidade localizada no Estado de Wisconsin vive constantemente em um inverno rigoroso sua maior parte do ano, por isso mesmo as lembranças retratadas por Graig são marcantes, aduladas em poesia visual (retratos lindos, quase psicodélicos que mostram neve, frio, ondulações imaginárias, vento e corpos) e texto sereno, real, sobre um fio condutor inabalável, entre o lírico e o bruto (paradoxo, mas no ponto exato).

Parece um expurgo das dores juvenis, mas feita de maneira tão bonita, com momentos de puro êxtase visual, acolhido numa narrativa emocionante.

Quando Craig conhece Raina, sua primeira paixão, a amiga que passa por um problema emocional ao saber do divórcio dos pais, e ele resolve passar duas semanas na sua casa, eu, e imagino todos que leram, torcem para que as coisas dêem certo para Craig. De fato, são naqueles 14 dias que Craig vai compreender muitas coisas sobre família, culpa, desejo, paixão, amor, amizade, perda e responsabilidade.

Os pensamentos e constantes diálogos com Raina, sua paixão, correspondida, é onde ele mostra sua verve na composição de uma trama limiar em uma família que, apesar de boa, vai se desestruturando por causa da separação e isso reflete nas decisões conflitantes que serão tomadas no decorrer da história dos dois, quase almas gêmeas, ainda em aprendizado.

Um diálogo em particular, lindo, intercala os momentos de lucidez e delírio de paixão do casal.
Os dois estão deitados no chão, em torno de algumas velas, e eles travam o seguinte diálogo:

“Craig... Você acredita em Deus?”

“É claro.”

“Eu também... Mas não acredito no CÉU.”

“É?”

“Não tenho fé no futuro... Seja ele perfeito ou abominável. Se a Sarah morresse hoje, ela iria para o CÉU ou para o INFERNO?”

“Pro céu, acho.”

“Mas obviamente ela é meio nova para todo aquele esquema de ‘TRAGA-ME-JESUS-PARA-O-SEU-CORAÇÃO’.”

“Sim. Acho que acredito em PERÍODO DE CARÊNCIA... No qual todos têm passagem AUTOMÁTICA para o céu antes de chegar à idade em que ENTENDEM a mensagem de Deus”

“Você acredita mesmo nisso?”

“Bom... É só ESPECULAÇÃO...”

“Com que idade essa ‘CARÊNCIA’ acaba? Cinco? Seis anos?”

“Foi por aí que e fui ‘SALVO’.”

Não posso desfiar mais o que desenrola na história para não estragar as surpresas e momentos que a narrativa é conduzida. Um retrato emocionante, onde Craig, quando volta da sua experiência com Raina, sabe que deverá tomar decisões importantes e que afetará inclusive a sua família, o modo de ver, de pensar e viver, contrariando alguns e promovendo um amadurecimento vital naqueles que ele ama, ainda que isso possa abalar sua fé, ele chega ao fim inteiro e contente com as decisões tomadas, mesmo que a sua educação religiosa seja incisiva para reiterar sua visão de situações íntimas e pessoais das suas ações, herança da sua igreja batista.

Momentos de pura inspiração em que Craig trava uma guerra particular de culpa e desejo, quando confronta a sagrada escritura – principalmente Coríntios – com a explosão de seus hormônios, por sentir paixão e tesão por Raina. E tudo, texto, ação, diálogo, citações bíblicas formam um painel coeso, às vezes delirante, mas tão lírico, humano, que somos capazes – digo leitores sensíveis – de adentrar ao universo de Craig com uma intimidade de velho amigo que ler aquelas cartas - sempre surpreendentes pelas revelações contidas.

Quando eu acabei de ler “Retalhos” imaginei que trilha sonora poderia compor a leitura e não imaginei canções mais apropriadas do que as das bandas The Shore e Athlete. O tom e a métrica baladeira, com o misto de folk, rock, pop é perfeito.

É ouvir canções como “I Love” “Stand Int The Sun” e “You Got The Style “, do Athlete, e as lindas “Take What’s Mine” e “Waiting For The Sun”, do The Shore, para visualizar muitos trechos da vida de Graig retratada no livro/HQ.

“Retalhos” foi lançando originalmente em 2003 lá fora, quando o autor tinha 27 anos. Depois de lançado foi dos livros (no gênero HQ chamado de “Graphic Novel”) mais premiados em todos os tempos, ganhando prêmios reverentes do mundo da HQ, como o Eisner e o Harvey Awards nos EUA (2004) e prêmio da crítica francesa no Festival de Angoulême (2005).