terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Amigos, canções e histórias - Que se foda!


No começo do ano de 2008 encontrei minha velha camisa preta com a estampa de Joey Ramone, ela estava dentro de um baú cheio de revista velhas da Cinemin e Bizz. Era uma memorabília que eu havia guardado a sete chaves e pensei que havia perdido.

A lembrança era clara quando encontrei ao lado dela uma velha fita K-7 com algumas gravações. Não lembrava mais disso, mas tinha uma inscrição na capa. "Soundrock ao vivo - Fábio e Marcos". Era uma coletânea que eu e o meu amigo Fábio tínhamos feito com algumas canções que gravamos para um projeto de uma banda de rock.

Em 1989, Fábio um dia foi lá em casa com o violão e um gravador de dois canais. Eu tinha 19 anos e ele 18 e mostrei algumas coisas que estava compondo com um velho ukelele deixado por um tio maluco. Eram melodias simples e que havia permitido uma sincope bruta do hardcore, ainda que mais lento do que o usual, já que estava encharcado (para não dizer alucinado) de Syd Barret e o seu álbum Madcap Laughs, e, ainda mais com "Loki", de Arnaldo Baptista, e achei por bem fazer uma fusão mais digesta.

Ele achou estranho e puxou a sua versão hardrock para uma música de Geraldo Azevedo, a letra era bacana e entendi o que ela queria dizer. Se eu tinha a melodia, faltava uma letra que casasse com a métrica da canção. Puxei minha pasta azul de anotações e mostrei pra ele alguns poemas que havia escrito, alguns em inglês, fruto da minha inserção linguística no Yázigi (depois abandonei o curso e fui tentar o russo, me lasquei também, enfim... Outra história).

Ele se amarrou em duas letras, "Anne and The Wolf", uma narrativa que havia escrito baseado em um filme (Ana e os lobos, obviamente) do diretor espanhol Carlos Saura, e "Underground", minha homenagem as letras sadomasô de Lou Reed - da banda The Velvet Underground. Ele trouxe uma composição pronta e acrescentou alguns trechos do que eu havia composto com o ukelele. A primeira versão de "Anne and The Wolf", que escrevi em inglês, saiu bem tosca. Desconstrui alguns versos e encaixei duas linhas finais de um Haikai curto. Tentamos cinco vezes adaptar a métrica da letra a canção e valorizar o refrão. A batida era muito rápida e ainda não havíamos chegado a um denominador comum.

Então eu pensei em baixar um tom e desacelerar a batida. O que antes era um rock vivo, estilo Husker Dü, virou uma balada folk com pitadas de hard. Deu certo. Combinamos a voz e ensaiamos seis vezes. Tínhamos um canal para o microfone e outro para o violão de 12 cordas. Já havíamos revistos os compassos e parecia tudo certo.

Eu tinha uma fita K-7 cromo preta e coloquei no gravador. Tranquei o quarto e no absoluto silêncio gravamos em um único take "Anne and the Wolf". Ele encaixou um solo harmonioso no final. Repassamos a fita e tentamos gravar outro take. Porém, o primeiro foi o melhor. Em três horas tínhamos uma música pronta.

Quase cinco da tarde passamos para a próxima música. "Underground", apesar do título em inglês havia escrito em português mesmo, e era uma história curta de uma menina proletariada que era muito inteligente, mas se via engolida pela mediocridade reinante de sua escola e casa, resolve cair na noite e se envolve em uma experiência sado-masoquista com uma amiga rebelde. Mostrei alguns riffs em staccato para o Fábio e ele deu um estalo e disse que tinha uma melodia bacana para integrar. Mezzo rockabilly, mezzo psicodélico acrescentei um verso final longo (quase um diálogo) - "Eu vejo você se desmanchar em cinzas nesse cogumelo de tormento chamado hormônio". Ele riu muito desse verso final, mas conseguiu ajustá-lo na métrica da música.

Subimos um tom e o vocal do Fábio ficou quase rouco, rockabilly com intensidade de um blues, se tivéssemos o piano de Arnaldo Baptista seria a canção perfeita. Achei que faltava um detalhe bacana no final da música, o solo final poderia ter um bottleneck slide. Como o violão do Fábio era de cordas de aço, a minha idéia seria perfeita. Peguei um frasco vazio de Matrinil. Ele tava tão sintonizado com o meu pensamento que ele deslizou com perfeição o bottleneck slide improvisado sobre as cordas mais graves. Tentamos ainda com um copo de vidro, mas ficou estranho.

Ele tocou quatro, cinco, seis vezes a parte do arranjo. Depois recitei a letra e por fim cantei, fundindo com a melodia. Emulamos o solo final com um dedilhado emocionante e "Underground" ficou pronta.

Quase sete horas da noite e gravamos o resultado. Usamos um truque nessa canção. Gravei a parte de dedilhado do violão separado dos solos em uma fita K-7 extra. Peguei um outro gravador e sincronizamos na mesma batida, com o resultado dava para ter um violão base e outro solo ao mesmo tempo, em um mesmo canal. Tudo improvisado, mas para dois jovens pretensos músicos de garagem era pura revolução. Com essa síndrome de Brian Epstein, ensaiamos duas vezes mais com o truque de gravação e deu certo. Gravamos dois takes distintos: um mais puro, quase cristalino, com voz suave sobre os violões, e outro mais cru e rocker, com voz subindo um tom em cima dos arranjos. Sinceramente, eu gostei mais segunda versão e ele da primeira. Mas dali nasceram as nossas duas melhores canções.

Nos dias posteriores fizemos mais quatro, mas eu achei que ficaram bem abaixo da média - como se pudéssemos medir o valor delas sendo que só nós tivemos acessos à elas. Um blues com influência de Pink Floyd - eu podia ouvir o teclado de Rick Wright fazendo o acompanhamento em meus pensamentos. As outras três canções eram baladas, mas já tinha perdido o ímpeto criativo e lembro que chegamos a colocar um instrumento de sopro, uma flauta doce que o irmão dele tocou.

A fita ficou gravada e tiramos apenas uma cópia, eu fiquei com a "fita master". Por força do destino ou da situação, Fábio entrou no exército, eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular e acabei me apaixonando por literatura russa - com isso passei a escrever contos e peças de teatro (encontrei um original desses escritos e até que me surpreendi. Não era de todo ruim, mas faltava maturidade). Com o passar do tempo, reuníamos a nossa turma de violão e muito raramente cantávamos uma ou duas canções nossas. Nossos amigos não entendiam e pediam covers. "Foda-se" ele dizia e acabava não tocando mais nada.

A camisa com a estampa de Joey Ramone era uma presente que eu havia me dado quando tinha feito 16 anos. Achava que para quem sabia apenas dois acordes de violão o mundo não valia a pena para receber minhas curtas e rebeldes canções. Os Ramones me ensinaram que isso era possível e, de maneira absoluta, ainda acreditar que os losers eram os verdadeiros mantenedores da cultura pop nesse mundo sem vergonha.

Por causa dos Ramones me transformei em músico de garagem e quartinho. Isolado do mundo, com meus livros, telas, gibis, centenas de discos de vinil, dezenas de fitas K-7.

Tinha ainda a pretensão de ser um poeta romântico, dos amores fracassados, mas que sabia, sem por e nem onde que eram experiências minhas e ninguém tinha a ver com isso. Gostava de mim quem quisesse. O Fábio tinha o mesmo pensamento, só que musicalmente ele era mais regionalista, se consumia Geraldo Azevedo e Zé Ramalho na mesma proporção com que ouvia Van Morrison, Pink Floyd e Iron Maiden, eu fixava minha atenção sonora no punk rock e misturava Led Zeppelin, Deep Purple com U2 e The Smiths. O nosso prato musical comum era Ramones. Por isso a camisa tinha o significado importante pra mim.

Através dela me tornei amigo de Fábio. "Você gosta também?"

No final das contas quando íamos jogar sinuca com os nossos amigos em comum, altas madrugadas, depois de termos deixado nossas namoradas em suas devidas casas, ele pegava o violão, que sempre levava dentro do Fusca que tinha, e arriscávamos a cantar as canções que havíamos feito. Nunca se tornaram hits ou polivalentes do circuito alternativo, afinal aquela fita estivera guardada por anos e ouvir de novo, depois de tanto foi uma experiência e tanto. Nossos amigos, por fim, creditaram um talento incomum à dupla, ainda que eles não entendessem que estávamos querendo reinventar a música ao nosso modo, com nossas influências e dar algo novo. Foi uma experiência de dois amigos que amam música.

Hoje eu sou jornalista e o Fábio veterinário. Eu do interior de São Paulo e ele de Recife. Eu trabalho em Porto Velho e ele em Brasília. Há mais de sete anos que não nos vemos, mas quando conversamos no MSN ele sempre lembra das velhas canções que compomos. Ficaram em nossas memórias. A fita master, por fim, se perdeu ano passado quando o mofo comeu quase toda o rolo de fita e o som ficou inaudível.

Numa noite uma conhecida de uma amiga nossa em comum encontrou o meu caderno de anotações, leu, revirou os olhinhos, coçou o queixo e deixou de lado. O Fábio a encontrou dias depois na Discolândia, e ela comentou com ele que não gostava de gente com problema de amores mal resolvidos, pois sempre usava o que escrevia como forma de escape. Ele perguntou de quem ela falava, e ela disse o meu nome. Ele me contando que riu muito do que ela tinha falado. "Você conhece a vida dele?"
Ela disse que só nas reuniões do grupo de amigos, mas não tinha se aprofundado em conversar comigo.
Ele: "Então você não o conhece mesmo".
Ela: "Eu vi aquele caderno dele cheio de anotações e li. Como eu sou culta também, peguei de curiosa..."
Ele: "Pois é, agiu errado e se você tivesse prestado atenção, iria ler na primeira página: 'Contos e letras', ele escreve aquilo que deve ser escrito como forma de ficção, para provocar. Você caiu direitinho. "
Ela: "É a minha opinião e é o que eu acho".
Ele: "Bom, de amor mal resolvido ele não tem nada. Namora, fez um livro pra namorada e pelo que sei os dois estão muito bem".
Aí ela ficou olhando séria pra ele. Ele começou a rir.
Ela: "Que se foda!"
Ele me contou isso e eu lembrei da música "Underground". Tem um trecho da música que dizia: "Ela tenta compreender seu mundinho desumano/ Não existe razão baby/ Pois ser inteligente é usar as arma certas/ Com aquele cara mundano".
Fábio disse que cantarolou a música pra ela e depois saiu. Foi engraçado.
A sintonia de nós dois ainda era uma constante em vista das composições e do entrosamento musical.
Só lamento que desse resultado musical só restou lembranças e histórias, amigos que passaram, canções que nunca mais cantaremos e as eternas influências que solidificaram nossa amizade.

Nenhum comentário: